- Escrito por Angelo Augusto Decanio Filho
O
componente ético dos ensinamento do Mestre Bimba na sua "academia"
estava implícito na sua pedagogia, exemplificado pelo seu comportamento e
posteriormente, na década de 50, por mim explicitado à guisa de
"regulamento", divulgado em quadro na parede oposta a entrada do
salão.
Havia
naquela época uma multiplicidade de conduta consoante os universos freqüentados
pelos praticantes da regional: a) conduta dentro da academia e interpares; b)
relacionamento com os grupamentos de capoeira não vinculados à
"regional"; e finalmente, c) comportamento em contexto social sem
conexão com a capoeira, especialmente com a regional.
Não
podemos estudar a ética do Mestre Bimba e dos seus primeiros seguidores, por
ser esta um conjunto de regras de conduta num determinado momento histórico e
pertinente a um universo específico.
Assim
teremos que considerar:
Ø A
ruptura do mundo da capoeira provocada pela eclosão da luta regional baiana,
gerada com a pretensão inicial de ampliar a eficiência do jogo da capoeira em
voga na época e portanto, com a necessidade de afirmação desta maior eficiência
presumida ante os praticantes do jogo primevo; a introdução da capoeira - u'a
manifestação cultural africana, legalmente proscrita e socialmente discriminada
ou seja, duma manifestação dum segmento social dominado, procedente duma
categoria escravizada - diretamente no seio daqueles que se outorgavam o título
de senhores da terra e portanto, num ambiente social hostil (classe dominante
de raízes européias);
Ø Uma relativa discriminação entre os participantes de grupos diferenciados pela presença do trabalho de Bimba, i.e., os mestres da velha ordem (jogo de capoeira) e os representantes da nova ordem proposta pelo Bimba;
Ø A
natural pergunta - Por que Bimba e não eu?- implícita nas palavras e no
comportamento dos mestres excluídos da preferência dos recém-chegados ao
universo da capoeira, do acesso à fonte de prestígio social e da nova e
promissora fonte de renda. Interrogação que necessariamente conduzia ao ciúme,
à inveja e ao despeito, com todas suas conseqüências malignas;
Ø A
necessidade política de manobras entre os obstáculo legais para alcançar a
liberdade de prática e entre as malhas do preconceitos para granjear a simpatia
dos mentores da juventude, donde proviam os novos alunos;
Ø Os
temperamentos e níveis culturais de Bimba e dos seus primeiros alunos,
componente do amálgama da "regional", fruto da miscigenação de
componentes culturais africanos a indígenas brasileiros e eurobrasilianos, que
sem dúvida influenciaram as diretrizes técnicas e comportamentais da nova face
da "brincadeira de pretos".
RELAÇÃO ENTRE MESTRE E ALUNOS
A figura carismática de Bimba se apresentava entre nós como a projeção da autoridade patriarcal e magistral, impondo respeito irrestrito e a imitação do seu comportamento viril, sem titubeios, nem dúvidas. Sua palavra era a lei e a verdade. A nossa verdade e paradigma a ser acompanhada durante toda uma vida, gravada na alma e no coração ao fogo e ferro duma veneração ilimitada, persistindo no meu caso há mais de 60 anos!
RELAÇÃO INTERPARES
A relação
entre os componentes da nossa academia seguia o modelo ético e a etiqueta
africana.
Cumpre
acentuar que, sem o conhecimento destes padrões comportamentais africanos não
se pode compreender o sentido de suas regras e suas conotações éticas.
Impõem-se
como fundamentais o estudo e conhecimento da cosmogonia, da cosmogenia, da
filosofia e da lógica africanas, bem como do escravismo como fator econômico no
ciclo de conquistas e dominação do mundo pela cultura européia.
A
capoeira moderna vem afastando de suas raízes africanas pela europeização dos
seus cantos, musicas, ritmos, rituais e técnicas.
Impõe-se
assim o retornos à fonte original para coletar os fundamentos mais límpidos dos
componentes culturais.
Única
maneira de obter os conhecimentos indispensáveis à elaboração do código de
ética, contra-balançando a contaminação pela violência decorrente do
colonialismo europeizante e da pretensa superioridade cultura dominante.
O
respeito ao "mais velho", fonte de aprendizado pelos
"papos" e demonstrações práticas, detentor de conhecimentos e
habilidades desconhecidas pelo "mais novo", era imposto pela tradição
e pelo reconhecimento tácito da superioridade.
O
respeito pelo companheiro era imposto, pelo desconhecimento da sua capacidade
atual e pela regras...
"Confiar sempre no parceiro...
Desconfiando
do que ele possa fazer!"
"O
parceiro é como o espelho, reflete a sua conduta...
Não bata,
para não apanhar!"
"Quem
bate sempre esquece...
Quem
apanha sempre se lembra e espera...
Um dia
vai desforra!"
RELAÇÃO COM CAPOEIRISTAS DOUTROS GRUPOS
A
convicção profundamente enraizada da superioridade técnicas da regional sobre o
jogo de capoeira tradicional , aliada ao ânimo belicoso dos alunos, a
necessidade de auto-afirmação, a pretensa superioridade cultural da classe
dominante ( donde provinham os "acadêmicos"), a humildade dos
praticantes do jogo tradicional e o receio das conseqüências legais do
enfrentamento individual do popular com o dominante, perturbavam sobremodo as
relações amistosas entre o "clássico" ( a capoeira tradicional ou popular)
e o "moderno" (a "luta" regional do Mestre Bimba)
acarretando o óbvio: um agastamento de ambas as partes.
Acentuavam
a divergência e insuflavam o enfrentamento , a diferença de ritual e o
andamento dos toques, desde que no estilo de Bimba era permitido e recomendado,
o uso dos membros superiores no floreio e no ataque, enquanto o ijexá era
acelerado em decorrência das características pessoais do nosso Mestre e dos
seus seguidores, belicosos e apressados.
Ressalvando-se
o comportamento daqueles provenientes das classes populares, entre os quais eu
me incluía, que se harmonizavam com seus colegas mais humildes, mantendo um
relacionamento mais amistosos com os capoeiristas tradicionais.
RELAÇÃO
COM OUTROS MESTRES
O
endeusamento da figura de Bimba pelos seus alunos fatalmente conduziu, sem
nenhum propósito maldoso, à diminuição do valor dos antigos mestres ante à
majestade atribuída ao nosso Mestre, sendo reservado aos mesmos o papel
secundário de figuras representativas dum estádio primário na evolução de nossa
arte, respeitáveis ancestrais de valor histórico, porém ultrapassados.
A maioria
dos acadêmicos entretanto guardando o respeito e a consideração recomendada
pela etiqueta da classe dominante no trato com as pessoais, independentemente
da categoria social.
Alguns,
entre os me incluía, conservando a admiração pelo beleza dos seus toques e
cantos; alegria, disciplina, cavalheirismo e lhaneza das rodas, e
extraordinárias habilidades no jogo de dentro, no jogo baixo, elegância e
gentileza dos seus movimentos, paradigmas coreográficos.
RELACIONAMENTO NO CONTEXTO SOCIAL
O
preconceito da classe dominante contra as manifestações culturais
áfrico-brasileiras e a sua proscrição legal, conduziu os primeiros alunos do
Mestre a um proselitismo somente comparável àquele dos discípulos de Jesus,
sempre apregoando a superioridade dos ensinamentos e da conduta do Mestre!
Em casa,
na escola, na rua, nas festas, nos cinemas, nos bares e restaurantes, nas aglomerações de qualquer natureza os alunos exibiam sua qualificação, a nobreza
de ser "ALUNO DO MESTRE"!
Cada
palestra uma oportunidade para cativar um seguidor potencial!
Cada
instante um momento para exibir a excelência da prática da capoeira como defesa
pessoal, preparo físico e coreografia!
Cada
desencontro um chance para demonstrar a eficiência duma rasteira, tão
característica
da capoeira como a pele negra dos africanos e seus descendentes!
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